25/04/2011

O relativismo rasteiro do aluno (e do professor!)

Por Paulo Ghiraldelli Jr(*)
28/02/2011

Parece que o relativismo saiu do campo filosófico, onde tem algum sentido, e adentrou para o âmbito do senso comum, tornando-se um alimento esquisito de estudantes ruins e, agora, até de professores – em geral os formados em faculdades particulares pouco recomendáveis.
O caminho pelo qual o senso comum chegou ao relativismo pode ter a ver com alguma derivação da filosofia. Trata-se do rapaz ou da garota que ouviu em algum lugar a frase de Nietzsche “só há interpretação” e, então, acredita que pode escrever suas opiniões na prova e, ao final, jogar esse pó de pirilimpimpim nos olhos do professor e exigir uma nota boa. Este, atordoado, tem de lhe dar uma nota. Quando é só o aluno que faz isso, tudo bem. Mas quando até mesmo o professor (universitário!) já chegou a este ponto, as coisas realmente vão de mal a pior. Os Estados Unidos viveram isso. Com a inclusão digital de Lula, estamos podendo notar melhor que o Brasil, mutatis mutandis está chegando ao mesmo Calvário, onde ocorrerá a crucificação da verdade e do certo, indistintos do falso e do errado. Se antes já não se podia falar do belo, pois alguém vinha glorificar a estupidez com a frase “beleza não se põe na mesa”, agora as novas gerações acham que Nietzsche e outros “pós-modernos” irão lhes autorizar a não ler mais nada, pois podem dizer qualquer coisa de qualquer coisa.
É desagradável tirar a chupeta da boca dessa juventude, mas, enfim, está na hora desse pessoal chegar à vida adulta. Para tal, vou contar um segredo (de Polichinelo): o falso é o falso, o errado é o errado, o verdadeiro é o verdadeiro e o certo é o certo. Nada mudou. Ou melhor, o que mudou não os atinge.
A postulação relativista não se sustenta pela lógica. E sem a lógica, não temos como conversar. Pois veja, se digo que “só há interpretação”, então essa frase também é só uma interpretação (a mais) e, portanto, não tenho razão nenhuma para lhe dar grande valor. Ela vale tanto quanto a sua contrária, que nega que o enunciado “só há interpretação”. E eis que estamos enredados numa situação complicada: quando afirmamos, negamos o que afirmamos.
É esquisito que o jovem não perceba isso, que é algo simples e básico da lógica, e queira a qualquer momento sacar o seu “tudo é uma questão de ponto de vista” para dizer algo que não está implícito aí nessa frase que é “tudo é uma questão de ponto de vista, e ponto de vista cada um tem o seu, que deve ser considerado válido”. Ou seja, o relativismo, graças a um democratismo que nada tem de democrático, se envolve na criação de um sofisma. O sofisma é jogado como casca de banana no pé do professor. Este, estando no mesmo plano de argumentação do aluno, não consegue então dar a nota ao trabalho do aluno. Resta a ele dizer, autoritariamente, que o aluno errou. O aluno irá dizer: “não errei, o senhor é que não consegue conviver com a minha opinião divergente”. Ponto final. O professor, vitimado pela esperteza pouco inteligente do aluno, tem de engolir essa, dado que sua formação é tão triste quanto a que o aluno quer obter.
Bastaria o professor mostrar que a frase “só há interpretação” não se sustenta para calar o aluno. Mas ele, professor, já não pensa mais logicamente. Aliás, ele próprio não percebe a falácia. Ou, pior ainda, ele ouviu alguém dizer que Nietzsche pronunciou essa frase e viu muitos comentarem, então ele acredita que ela valha também para questões da prática do “como corrigir uma prova”. Ele não percebe que o “só há interpretação”, na boca de Nietzsche, diz respeito a uma tentativa filosófica de ir além da lógica. Mas sem chutar a lógica. “Só há interpretação” diz apenas que há múltiplas perspectivas. Nietzsche nunca disse que todas as perspectivas são equivalentes. Nietzsche adotou o perspectivismo, não o relativismo.
Mas, então, qual o critério para Nietzsche avaliar as perspectivas? Nesse caso, a conversa sai do campo comum e entra para a própria doutrina de Nietzsche. Ele advoga uma perspectiva que não seria a do homem, a minha ou a de qualquer outro enquanto bípede-sem-penas, mas a perspectiva da vontade de potência. Bem, mas o que é e o que faz a vontade de potência? Eis então que os scholars se digladiam: uns apóiam a idéia de que se trata de um princípio metafísico e outros afirmam que se trata de um elemento cósmico ou, ainda, de uma metáfora para poder conversar além da conversação “demasiado humana” (presa ao Humanismo). Mas, a essa altura, já não estamos mais falando de questões práticas que permitem avaliar uma prova. Estamos já dentro de um complexo pensamento filosófico. Cabe então, voltar à prova do aluno.
Na prova do aluno, as coisas são simples: pois o que se compara são textos, e a comparação, portanto, é de ordem empírica. Há o que podemos concordar que se trata de uma descrição e há o que podemos concordar que já é uma interpretação. Mas, se na escola primária não ocorreu o aprendizado de como fazer a descrição, a partir de olhar um quadro, e em cima disso, o aprendizado de fazer uma interpretação, então, mais tarde, realmente tudo fica muito confuso. Ou seja, por um problema de má-alfabetização, alguém pode muito bem chegar à faculdade querendo ler filosofia sem nem poder ler O Pato Donald. Isso ocorre com muita gente. São pessoas assim que não conseguem entender o que estão lendo, pois não sabem mais as hierarquias narrativas que um texto cria. Entendem as palavras, mas não conseguem entender os níveis de complexidade dos textos. Lêem de modo errado e quando escrevem produzem algo infantil, até meio estúpido, para não dizer maluco.
O caos mental de pessoas assim as faz acreditar (ou simplesmente se agarrar nessa muleta) que “cada um tem sua verdade”, e que a verdade não tem mais nenhuma objetividade. Não conseguem entender os manuais de filosofia quando estes dizem que a verdade é objetiva. Acreditam que a verdade é subjetiva. Mas não é. A verdade é um adjetivo de enunciados, especialmente proposições, e para uma proposição só há duas possibilidades, ou é (objetivamente) verdadeira ou é (objetivamente) falsa. “A banana está sobre a mesa” – cabe dizer desse enunciado que ele é falso se não há a banana em cima da mesa e cabe dizer que ele é verdadeiro se há a banana em cima da mesa (da mesa em questão). Isso é objetivo. Agora, se alguém me diz como que eu justifico a verdade de “A banana está sobre a mesa” e a banana está sobre a mesa, eu posso dizer que minha justificação é dada, por exemplo, pela frase “eu vi a banana sobre a mesa”. Alguém pode dizer que eu fui enganado, que era um bastão, não uma banana. Eu posso ampliar a justificação, dizendo “eu vi bem de pertinho e minha mãe estava comigo e também viu, era uma banana”. E assim por diante, seguem-se as justificativas.
Posto o valor verdadeiro de um enunciado, o que pode ser chamado de subjetivo são as justificações para sustentar o valor verdadeiro (ou falso de uma proposição). E essas justificativas não são quaisquer. Elas são boas quando mostram plausibilidade diante de platéias interessadas (e competentes, dentro de uma certa possibilidade do tempo e do espaço). No caso do aluno, a platéia é o professor e a comunidade científica representada pelo professor.
É difícil expor essa história diante do caos em que está a educação brasileira. Mas, o que cabe a todos nós filósofos, ao menos no Brasil, é a tarefa de não nos trancarmos e, enfim, continuarmos nessa batalha. Sei que alguns colegas desistiram e foram para os gabinetes ler o seu autor preferido. Eu sei disso! Mas, isso pode ser um perigo daqui um tempo. Podemos estar criando uma sociedade inteira que poderá ter uma dificuldade imensa de ler a revista Caras.

(*) Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Também disponível em http://ghiraldelli.pro.br/2011/02/28/o-relativismo-rasteiro-do-aluno-e-do-professor/