06/07/2010

O Arauto do Congo

O arauto do Congo

Ele veio pedir ajuda para as mulheres que gritam em silêncio contra o estupro

03 de julho de 2010 | 12h31

Por Mônica Manir (Estadão)

A jornada de Denis Mukwege Mukengere começa às 7h15 e termina quando acaba. Como seu ofício é cuidar de mulheres que sofrem violência sexual na República Democrática do Congo, está fadado a horas extras - no próprio território e fora dele. Nessa semana, o Anjo de Bukavu veio ao País tentar explicar, com um francês escorreito e um inglês destemido, que a capital mundial do estupro precisa da nossa ajuda. “Maybe Brazil is our chance”, disse, com as escleróticas em fogo. Tinha dormido pouco. Estava fora de fuso depois de 18 horas de voo atribulado a partir de Bruxelas rumo a Porto Alegre, onde atendia ao chamado do Fronteiras do Pensamento, projeto que organiza conferências com nomes de projeção. A sua começaria dali a duas horas, dava para ver Brasil e Chile sossegado. Mas ele não tinha fôlego a perder com a jabulani. Sua África é outra.

Paula Allen/AE
Por dia, dr. Mukwege recebe uma média de dez vítimas de violência sexual
Foto: Paula Allen/AE

Ela fica em Bukavu, capital da província de Sud-Kivu, na fronteira com Ruanda. A população urbana gira em torno de 240 mil pessoas. A rural chega às 250 mil. É área de observação internacional desde quando os hutus ali se refugiaram após o genocídio em Ruanda. O refúgio virou foco de resistência contra os tutsis, que conquistaram o poder. Naquela época (1996), a República Democrática do Congo era Zaire e, à revelia da ONU, o país acertou com Ruanda o retorno de 800 mil desses refugiados à terra natal. Em 1997, cerca de 200 deles morreram sufocados num trem apinhado que os remetia nessa direção. Para trás ainda ficaram rebeldes hutus, que hoje barbarizam a região. Fazem parte de milícias armadas até as canelas que disputam entre si o controle das minas de coltan - mistura de colúmbio com tantalite da qual se obtém o tântalo, exímio condutor de eletricidade presente em mísseis, satélites, laptops, playstations e no celular do seu bolso. O coltan de Kivu possui tântalo mais do que qualquer outro. É conhecido como ouro cinzento e cobiçadíssimo fronteira afora.

A população já entendeu que um garimpeiro de coltan pode ganhar mais em duas semanas do que num ano inteiro colhendo feijão nos Grandes Lagos. Mas também percebeu que nem as milícias nem o Exército congolês, que diz combatê-las, valem um franco furado. Ambos são dados à selvageria, e a mais evidente delas está encravada em milhares de corpos femininos, estuprados continuamente. Desde o início do conflito, há cerca de dez anos, mais de 500 mil mulheres foram violentadas no país, apesar da presença da Monuc, a maior força de paz da ONU, que fincou 22 mil soldados na região. O estupro não fica só entre elas e o criminoso. Maridos, filhos, a família inteira e não raro os vizinhos são obrigados a presenciar, quando não a participar do sádico ritual. Quem se nega é morto. Quem assiste, muitas vezes também é. Algumas mulheres são levadas para a selva, onde viram escravas sexuais. São amarradas a árvores e violentadas, reviolentadas, re-reviolentadas. Quando descartadas vivas, muitas trazem no útero agredido um filho que a comunidade rejeitará. Se for uma filha, a maldição é pior.

“Não é por desejo sexual que esses homens fazem isso, mas para subjugar a comunidade”, afirma dr. Mukwege. “É uma estratégia de guerra.” Graduado em medicina no Burundi, esse filho de pastor se especializou em ginecologia e obstetrícia no Centre Hospitalier Universitaire d’Angers, na França. Voltou para o Congo para aprimorar o atendimento pré-natal no Hospital Protestante de Lemera, cidade ao norte do Bukavu. Em 1996, o hospital foi atacado por grupos rebeldes, que protestavam contra a ditadura de Joseph Mobutu. Em Bukavu no dia do ataque, dr. Mukwege não presenciou o incêndio do prédio nem o assassinato de todos os agentes de saúde e de dezenas de mulheres, muitas grávidas. Acusado de espionagem, fugiu de Bukavu no porta-malas de um carro.

Dos 3 aos 80 anos. Quando voltou, foi para fundar o Hospital Panzi, num subúrbio da cidade. Dr. Mukwege cortou a faixa de um hospital-maternidade, mas logo percebeu que seu público era outro. Mais que gestantes, ele recebia meninas de 3 anos a senhoras de 80 vítimas de um estupro que envolvia, depois do ato sexual, a introdução de pedaços de madeira ou baioneta, quando não o disparo de um tiro, que destroçava os genitais e os órgãos pélvicos das mulheres. Muitas chegavam com fístulas extensas, perdendo sangue, urina e fezes ao mesmo tempo. Para conter a incontinência, o ginecologista importou uma técnica praticada no Hospital de Adis-Abeba, na Etiópia. As pacientes ficavam internadas de três a seis meses e, nesse período, passavam por até quatro cirurgias de reconstrução.

Os verbos do parágrafo anterior, infelizmente, podem ser convertidos para o tempo presente. Hoje dr. Mukwege abre uma média de dez protocolos diários de estupro, a maioria ocorrida há três anos. Poucos são os casos em que consegue usar as 72 horas seguintes à violência para fornecer medicação contra aids, DSTs e gravidez. “As pacientes estão destroçadas física e psicologicamente, tentam esconder o problema até de si mesmas”, diz o médico. Mal pronunciam a palavra estupro, embora ela conste do francês e da maioria dos 12 dialetos que habitam a área. Chegam reclamando de dor abdominal e incontinência e, se instigadas a descobrir a causa, retomam flashes do ocorrido regados a um choro convulsivo. Estão sozinhas ou acompanhadas de filhos lactentes. Os maridos pegaram a estrada atrás do anonimato. “A humilhação de ter sido mero espectador da tragédia é tremenda”, afirma o médico.

Ele reconhece que homens também são estuprados e o efeito disso é tão devastador quanto. Muitos dos que admitiram a violência viram motivo de chacota, sendo chamados de “esposas da mata”: “É mais complicado tratar esse paciente do que tratar cem mulheres”, compara. Na sua clínica, porém, estupros de homens não passam de 1% . Em dez anos, ele já atendeu 30 mil mulheres.

O hospital tem uma equipe multidisciplinar que envolve cirurgiões, enfermeiros, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. A ideia é acompanhar os efeitos do trauma na medida do possível e tentar prevenir suicídios, por exemplo. Mas ele sabe que enviar uma paciente com colostomia de volta à selva é o mesmo que mandá-la para a morte. Advogados fazem parte do staff. Os homens da toga tentam levar os estupradores a juízo, já que existem leis prevendo sua punição. A custo, cerca de 400 processos estão em andamento, porém a expectativa não é muita. Quem por milagre foi preso acusado de estupro se safou pagando com uma galinha.

Mais eficazes são as maisons d'écoute, casas discretas, sem identificação nem número, onde ONGs acolhem as vítimas e lhes oferecem os ouvidos e a alfabetização, por exemplo. O mesmo objetivo de reintegração alicerça a City of Joy, encabeçada por Eve Ensler, autora da peça Monólogos da Vagina, que declarou ter sido abusada pelo pai quando criança. Eve trabalha com o Unicef e com a Fundação Panzi para levantar um espaço no qual as vítimas aprenderiam técnicas de autodefesa, direitos de cidadania e habilidades profissionais que lhes garantissem sustento. “A intenção é transformar dor em poder”, explica Christine Schuler Deschryver, que coordena o pré-projeto no Congo.

Enquanto isso, dr. Mukwege continua na lida de encorajar as pacientes a continuar respirando. Por inércia ou desalento, elas nem se escondem das câmeras quando equipes de TV aparecem em Panzi descortinando os 400 leitos. Ele, por deteminação, também não se intimida, apesar das ameaças constantes que recebe. Continua morando na cidade com sua mulher, Kaboyi Mapendo Madeleine, seus cinco filhos, Alain, Patrícia, Sylvie, Lisa e Denise, e seus três netos.

Alain, de 29 anos, trabalha no Hospital de Panzi como clínico geral e, se depender do pai, por lá continua. Dr. Mukwege quer manter a todo custo a pouca mão de obra de que dispõe. Uma de suas maiores expectativas em relação ao Brasil é estabelecer intercâmbios de mão única entre universidades congolesas e brasileiras para que, por enquanto, só os daqui conheçam a realidade de lá. Não é mesquinhez. É precaução. Teme que o contrário implique a fuga de mais cérebros, abatidos por tentar recuperar casos que incidem e reincidem sem horizonte de solução.

Antes de se apresentar na conferência de Porto Alegre, leram suas honras ao mérito. Em 2008 dr. Mukwege recebeu o Prêmio Olof Palme, concedido a quem se destaca na realização proeminente da paz, do desarmamento e do combate ao racismo. No mesmo ano, as Nações Unidas lhe outorgaram o Prêmio Direitos Humanos e o jornal nigeriano Daily Trust, o título de Africano do Ano. Em 2009, ele foi indicado ao Nobel da Paz, mas Obama era o nome da vez. A todos, dr. Mukwege manifestou reverência e agradeceu com um “merci”. O Salão de Atos da Universidade do Rio Grande do Sul também ouviu seu muito obrigado, num clima amistoso que ele, delicadamente, rompeu em dois momentos: com um “chega de neutralidade”, em menção aos infindáveis relatórios sem consequência prática dos capacetes azuis; e com um “precisamos quebrar o silêncio”, em menção ao mundo, que pouco caso faz de um crime que viola a humanidade.
Fonte: Estadão