01/12/2010

Evite micos na Língua Portuguesa!!

Como evitar o mico

Os tropeços de grafia, regência e concordância que ,mais comprometem a nossa imagem

O exército dos efraimitas, uma das 12 tribos de Israel, cruzou o rio Jordão para enfrentar Jefté, o chefe militar de Gileade. Exigia de Jefté o direito de dividir a glória - e, por óbvio, a pilhagem - da guerra amonita, mesmo sem ter participado do combate. Em resposta, o general abriu guerra. Venceu. Em fuga, os efraimitas tentaram cruzar o Jordão, de volta para casa. Deram de cara com os homens de Jefté, que tinham ordens de executar os fugitivos.
E é então que o episódio bíblico, contido no Livro dos Juízes (12,6), do Antigo Testamento, abandona a esfera da lenda para maravilhar a ciên­cia da linguagem.
Para peneirar a fronteira, os gileaditas obrigaram cada passante a dizer a palavra "chibolete" (transliteração de "espiga" em hebraico), que sabiam de difícil pronúncia a quem usasse o dialeto da tribo de Efraim. Dito e feito: os efraimitas foram constrangidos a passar pelo teste. Por mais que evitassem, enunciavam "sibolete". Ao todo, 42 mil foram mortos no ato, à medida que articulavam a palavra.
O relato virou uma metáfora do idioma como marca de identidade (o mais famoso chibolete português é o ditongo nasal "ão", impronunciável por estrangeiros). Principalmente, o caso mostra como denunciamos quem somos pelo modo como nos expressamos. A imagem que esperamos imprimir sobre nós mesmos está, sempre, ligada à forma como articulamos a linguagem, ao domínio do sistema da língua e às variantes do idioma que adotamos em cada situação comunicativa.
Quando falamos, temos a ilusão de achar que comunicamos só um conteúdo intencional, mas há outras informações transmitidas enquanto se fala. Não diz apenas aquilo que diz (desculpe o truísmo) quem fala "probrema" ou "a nível de", apela para o gerundismo ("vou estar providenciando") ou tropeça na concordância do verbo "haver" ("houveram reuniões em que nada se decidiu").

Uma parte do que dizemos de nós mesmos ao enunciarmos algo revela o nosso ponto de observação do mundo. Quem muito emprega expressões como "comportamento proativo", por exemplo, sinaliza que compartilha o universo de referência dos treinamentos empresariais e "entrega" o jogo sobre quem é. Pode fazer isso de forma deliberada, consciente. Em boa parte das vezes em que nos expressamos, no entanto, emitimos sinais involuntários de nossa formação e domínio do idioma. Se desarmados de intenção retórica, quando falamos revelamos muito ao dizer qualquer coisa, simplesmente somando significados ao sentido literal.

Assim, quem dirige a alguém palavras doces transmite 1) o significado literal de seu enunciado + 2) sua capacidade de ser doce. Tal como aquele que, ao usar um dado tom de voz (enfadonho, magnetizante, irritante), imprime ao que diz uma imagem de pessoa chata ou interessante.
O problema é quando a enunciação é marcada por cacoetes de linguagem usados à exaustão num dado ambiente e por incorreções gramaticais que põem a perder a boa imagem - construída ou apenas desejada - do falante ou redator. Quem desrespeita uma convenção ortográfica, por exemplo, dá mostras de ser 1) mal alfabetizado e 2) displicente - e, com isso, projeta para si 3) uma imagem de despreparo em outros campos, não só o da língua.

Do mesmo modo, quem incorre em vícios de linguagem típicos de uma atividade pode sinalizar uma falta de criatividade e versatilidade expressiva. Se for assim interpretado, sua mensagem pode ter o destino dado àquele ofício, que outra lenda (esta nacional) garante ter sido recebido pelo então ministro da Educação Jarbas Passarinho (1969-74).


Entrega
Na anedota, o reitor de uma universidade teria começado sua solicitação com deferências a Passarinho, a quem chamou de "iminente ministro". Fosse mais atento e o redator teria corrigido "iminente" (prestes a realizar-se) por "eminente" (importante, excelente, elevado). Não o tendo feito, foi simplesmente ignorado pelo ministro - e consta que com alegação irônica: "Ele deveria saber que já fui nomeado".
A pessoa se entrega pelas palavras que enuncia e pela sintaxe que adota. Ao ouvir a frase "Não esquece de levar a vitrola" deduzimos que ela é dita por alguém sexagenário, para quem o artefato tenha tido presença forte na paisagem social de sua juventude. "Não esquece de levar o som" traz o mesmo sentido, mas o ethos (perfil social) do usuário da língua é diferente. Do mesmo modo, quem escreve ou enuncia uma frase como "Viajei anexo ao chefe de departamento", no sentido de "viajei ao lado dele", criou uma engenharia sintática que não tem necessariamente garantia de ser entendida, o que o põe em suspeição.
Dizer é criar uma imagem social de si mesmo. O sentido é construído pela seleção e combinação de palavras. E, ao selecionar as palavras, a pessoa dá mostras de seu universo de referência, do lugar social de onde procede, suas preferências ideológicas e até de seu gosto estético. O jornal ou revista que noticia:
"Baderneiros invadem propriedades na zona leste" faz uma seleção lexical que toma posição diferente da do veículo de comunicação que enuncia:"Desabrigados refugiam-se em terrenos baldios da zona leste".
Em um e outro caso, o redator denuncia o próprio perfil, mais ou menos tolerante. Longe das esferas ideológicas, a imagem social do usuário do idioma é que está em jogo quando ele, por exemplo, tropeça no idioma ou carrega um arsenal de cacoetes de linguagem que se revela micado por interlocutores mais exigentes - um risco se o interlocutor em questão for um superior hierárquico ou um potencial empregador. Uma das razões para a ruína de uso de expressões como "a nível" foi o fato de ela indiciar um grupo social pouco prestigiado.
Escrever e expressar-se com versatilidade torna a vida em sociedade mais ágil e objetiva. Evitar "micos" gramaticais socialmente condenados pode fazer diferença profissional, por exemplo, porque aumenta a capacidade de negociação com clientes e fornecedores, ajuda a orientar reuniões e a defender ideias. Comunicar-se bem preserva a credibilidade que se deseja ter em um dado ambiente social. Seguir alguns conselhos - como os destas páginas - pode ser de ajuda nas situações formais de comunicação que vivenciamos.


Micos de grafia
EQUÍVOCO CORREÇÃO
Advinhar Adivinhar
Ascenção Ascensão
Apropiado Apropriado
Beneficiente Beneficente
Distoar Destoar
Excessão Exceção
Encapuçado Encapuzado
Frustado Frustrado
Flagrância Fragrância
Impecilho Empecilho
Paralizar Paralisar
Pertubar Perturbar
Previlégio Privilégio
Xuxu Chuchu

Micos de concordância e regência
O PROBLEMA O EQUÍVOCO A CORREÇÃO A EXPLICAÇÃO
Fazer "Fazem" dez meses. "Faz" dez meses. Se "fazer"exprime tempo, é impessoal.
Haver "Houveram" muitos fatos. "Houve" muitos fatos. "Haver", no sentido de "existir",
é invariável.
Ver/vir Se eu "ver" você por aí... Se eu "vir" você por aí... A conjugação é: Se eu vir, revir, previr. Da mesma forma: Se eu vier (de vir), convier; se eu tiver (de ter), mantiver.
Existir "Existe" muitas crianças. "Existem" muitas crianças. "Existir", "bastar", "faltar", "restar" e "sobrar" admitem normalmente o plural.
Mim/eu Para "mim" fazer. Para "eu" fazer. "Mim" não faz, porque não pode ser sujeito.
Entre Entre "eu" e você. Entre "mim" e você. Depois de preposição, usa-se "mim" ou "ti".
Redundância com "haver" "Há" dez anos "atrás". "Há" dez anos / Dez anos "atrás". "Há" e "atrás" indicam passado na frase.
Preferir Preferia ir "do que" ficar. Preferia ir "a" ficar. Prefere-se uma coisa a outra.
Chegar + preposição Chegou "em" São Paulo. Chegou "a" São Paulo. Verbos de movimento exigem "a", e não "em"
Chegar + Haver Chegou "a" duas horas e
partirá daqui "há" cinco minutos.
Chegou "há" duas horas e partirá daqui "a " cinco minutos. "Há" indica passado e equivale a "faz", enquanto "a" exprime distância ou tempo futuro (não pode ser substituído por faz).
Manter Se ele "manter" o acordo, teremos otimos resultados. Se ele mantiver o acordo,
teremos otimos resultados.
A conjugação é: Se eu/ele mantiver
Propor Quando eles "proporem"
o valor...
Quando eles propuserem o
valor...
A conjugação é: Se eu propuser etc.
Implicar Implicou "em" três etapas. Implicou três etapas. No caso, "implicar" rejeita preposição.
Meio Ela era meia louca. Ela era meio louca. "Meio", advérbio, não varia.


Micos da semelhança
PROBLEMA EXPLICAÇÃO
DE ENCONTRO A

x

AO ENCONTRO DE
e encontro a = Contra.


Ao encontro de = Na direção de;

De acordo com.
AO INVÉS DE

x

EM VEZ DE
Ao invés de = Ao contrário

Em vez de = Em lugar de
DESCRIÇÃO x DISCRIÇÃO Descrição = Ato de detalhar como algo é ou foi.

Discrição = Qualidade de discreto,


recatado e sensato
ESTADA X ESTADIA Estada = Ato de permanecer.

Estadia = Estada por tempo limitado.
ONDE X AONDE "Onde" = Em que lugar

"Aonde" = Para onde.


Micos que viram vício
  • Ambiguidade - Quando o sentido não fica claro, com enunciado com mais de um sentido: "O pai o filho adora" (quem adora quem?)
  • Cacofonia - Sequência de palavras que provoca som de uma expressão ridícula ou obscena: "Por razões de segurança". "Por cada etapa, ganharemos muito".
  • Plebeísmo - Uso de termos que demonstram falta de instrução ou variedade vocabular: "tipo assim", "a nível de", "meio que", "enfim" (como interjeição), gerundismo ("vou estar planejando").
  • Tautologia - Repetição
    desnecessária de ideia ou termo já enunciado: "critério pessoal", "encarar de frente", "planejar antecipadamente", "criar novos empregos", "acabamento final".


Micos sintáticos
OCORRÊNCIA O PROBLEMA
Viajar anexo Usado no sentido de viajar "ao lado de alguém".
Nunca "lhe" vi. O pronome lhe substitui a ele, a eles, a você e a vocês e por isso não pode ser usado com objeto direto: nunca o vi / não o convidei / a mulher o deixou / ela o ama.
"Aconteceu" muitos casos de reclamação de clientes. "Segue" os documentos necessários para o cadastro. "Fica" estabelecido as seguintes alterações. Na fala, o verbo anteposto ao sujeito nem sempre é assinalado. Por escrito, pega mal não fazer a concordância. Por isso: Aconteceram muitos casos... Seguem os documentos... Ficam estabelecidas

as seguintes alterações.

Micos do lugar-comum
Agenda positiva (Exame de um problema ou tentativa de acordo, em geral político, com base nos aspectos positivos da questão para os interessados.)
Agregar valor (Expressão vaga; algo como "juntar benefícios" - acabamento ou algo mais - a bem primário ou semiprimário.)
Aterrissar (Papéis e contratos na mesa). Tolice exagerada.
Atingir em cheio (Conseguir o objetivo plenamente, atingir o alvo, se concreto.)
Como um todo (O nome da coisa já é a coisa toda.)
Consumidor final (E o consumidor medial ou inicial?)
Continuar ainda (Por que o "ainda"?)
De braços cruzados (Em greve. Raras notícias sobre greve deixam de registrar, cansativamente, que os trabalhadores estão "de braços cruzados".)
Detalhe importante e pequeno detalhe (Contradição: detalhe é insignificância; e redundância: detalhe já é pequeno.)
Em função de (Por causa de.)
Fazer uma colocação (Apartear, falar, perguntar, interpelar, discordar).
Sofrer (No sentido de "receber" e sinônimos: Sofrer aumento, sofrer manutenção, sofrer cuidados. Ninguém "sofre" tais coisas).


Fonte: Revista Língua