Como evitar o mico
Os tropeços de grafia, regência e concordância que ,mais comprometem a nossa imagem
O exército dos efraimitas, uma das 12 tribos de Israel, cruzou o rio Jordão para enfrentar Jefté, o chefe militar de Gileade. Exigia de Jefté o direito de dividir a glória - e, por óbvio, a pilhagem - da guerra amonita, mesmo sem ter participado do combate. Em resposta, o general abriu guerra. Venceu. Em fuga, os efraimitas tentaram cruzar o Jordão, de volta para casa. Deram de cara com os homens de Jefté, que tinham ordens de executar os fugitivos. E é então que o episódio bíblico, contido no Livro dos Juízes (12,6), do Antigo Testamento, abandona a esfera da lenda para maravilhar a ciência da linguagem. Para peneirar a fronteira, os gileaditas obrigaram cada passante a dizer a palavra "chibolete" (transliteração de "espiga" em hebraico), que sabiam de difícil pronúncia a quem usasse o dialeto da tribo de Efraim. Dito e feito: os efraimitas foram constrangidos a passar pelo teste. Por mais que evitassem, enunciavam "sibolete". Ao todo, 42 mil foram mortos no ato, à medida que articulavam a palavra. O relato virou uma metáfora do idioma como marca de identidade (o mais famoso chibolete português é o ditongo nasal "ão", impronunciável por estrangeiros). Principalmente, o caso mostra como denunciamos quem somos pelo modo como nos expressamos. A imagem que esperamos imprimir sobre nós mesmos está, sempre, ligada à forma como articulamos a linguagem, ao domínio do sistema da língua e às variantes do idioma que adotamos em cada situação comunicativa. Quando falamos, temos a ilusão de achar que comunicamos só um conteúdo intencional, mas há outras informações transmitidas enquanto se fala. Não diz apenas aquilo que diz (desculpe o truísmo) quem fala "probrema" ou "a nível de", apela para o gerundismo ("vou estar providenciando") ou tropeça na concordância do verbo "haver" ("houveram reuniões em que nada se decidiu"). Uma parte do que dizemos de nós mesmos ao enunciarmos algo revela o nosso ponto de observação do mundo. Quem muito emprega expressões como "comportamento proativo", por exemplo, sinaliza que compartilha o universo de referência dos treinamentos empresariais e "entrega" o jogo sobre quem é. Pode fazer isso de forma deliberada, consciente. Em boa parte das vezes em que nos expressamos, no entanto, emitimos sinais involuntários de nossa formação e domínio do idioma. Se desarmados de intenção retórica, quando falamos revelamos muito ao dizer qualquer coisa, simplesmente somando significados ao sentido literal. Assim, quem dirige a alguém palavras doces transmite 1) o significado literal de seu enunciado + 2) sua capacidade de ser doce. Tal como aquele que, ao usar um dado tom de voz (enfadonho, magnetizante, irritante), imprime ao que diz uma imagem de pessoa chata ou interessante.
O problema é quando a enunciação é marcada por cacoetes de linguagem usados à exaustão num dado ambiente e por incorreções gramaticais que põem a perder a boa imagem - construída ou apenas desejada - do falante ou redator. Quem desrespeita uma convenção ortográfica, por exemplo, dá mostras de ser 1) mal alfabetizado e 2) displicente - e, com isso, projeta para si 3) uma imagem de despreparo em outros campos, não só o da língua. Do mesmo modo, quem incorre em vícios de linguagem típicos de uma atividade pode sinalizar uma falta de criatividade e versatilidade expressiva. Se for assim interpretado, sua mensagem pode ter o destino dado àquele ofício, que outra lenda (esta nacional) garante ter sido recebido pelo então ministro da Educação Jarbas Passarinho (1969-74). Entrega Na anedota, o reitor de uma universidade teria começado sua solicitação com deferências a Passarinho, a quem chamou de "iminente ministro". Fosse mais atento e o redator teria corrigido "iminente" (prestes a realizar-se) por "eminente" (importante, excelente, elevado). Não o tendo feito, foi simplesmente ignorado pelo ministro - e consta que com alegação irônica: "Ele deveria saber que já fui nomeado". A pessoa se entrega pelas palavras que enuncia e pela sintaxe que adota. Ao ouvir a frase "Não esquece de levar a vitrola" deduzimos que ela é dita por alguém sexagenário, para quem o artefato tenha tido presença forte na paisagem social de sua juventude. "Não esquece de levar o som" traz o mesmo sentido, mas o ethos (perfil social) do usuário da língua é diferente. Do mesmo modo, quem escreve ou enuncia uma frase como "Viajei anexo ao chefe de departamento", no sentido de "viajei ao lado dele", criou uma engenharia sintática que não tem necessariamente garantia de ser entendida, o que o põe em suspeição. Dizer é criar uma imagem social de si mesmo. O sentido é construído pela seleção e combinação de palavras. E, ao selecionar as palavras, a pessoa dá mostras de seu universo de referência, do lugar social de onde procede, suas preferências ideológicas e até de seu gosto estético. O jornal ou revista que noticia: "Baderneiros invadem propriedades na zona leste" faz uma seleção lexical que toma posição diferente da do veículo de comunicação que enuncia:"Desabrigados refugiam-se em terrenos baldios da zona leste". Em um e outro caso, o redator denuncia o próprio perfil, mais ou menos tolerante. Longe das esferas ideológicas, a imagem social do usuário do idioma é que está em jogo quando ele, por exemplo, tropeça no idioma ou carrega um arsenal de cacoetes de linguagem que se revela micado por interlocutores mais exigentes - um risco se o interlocutor em questão for um superior hierárquico ou um potencial empregador. Uma das razões para a ruína de uso de expressões como "a nível" foi o fato de ela indiciar um grupo social pouco prestigiado. Escrever e expressar-se com versatilidade torna a vida em sociedade mais ágil e objetiva. Evitar "micos" gramaticais socialmente condenados pode fazer diferença profissional, por exemplo, porque aumenta a capacidade de negociação com clientes e fornecedores, ajuda a orientar reuniões e a defender ideias. Comunicar-se bem preserva a credibilidade que se deseja ter em um dado ambiente social. Seguir alguns conselhos - como os destas páginas - pode ser de ajuda nas situações formais de comunicação que vivenciamos.
Fonte: Revista Língua |