30/03/2011

A vitrola e o iPad

A vitrola e o iPad 

ANTONIO PRATA


Num arroubo napoleônico, disse a mim mesmo: "Do alto desta estante, dois séculos me contemplam!"
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QUANDO A VITROLA e o iPad chegaram à minha casa, na mesma noite, semana passada, me senti como um anfitrião recebendo convidados muito díspares para jantar: temi que se desentendessem.
Coloquei-os lado a lado, sobre um móvel da sala: a tia velha, saindo do fundo de um armário, após vinte anos de hibernação, na casa do meu sogro; o "enfant terrible", recém-chegado de um shopping, nascido, quem sabe, há menos de um mês.
Constatando suas diferenças, num arroubo napoleônico, disse a mim mesmo: "Do alto desta estante, dois séculos me contemplam!"
A vitrola é a epítome do século 20, era da mecânica: engrenagens, correias, a agulha de metal, feita para percorrer as ranhuras do vinil.
Cada música, uma faixa: concreta, visível, tangível, até. Cada disco, dois lados, A e B, como o mundo de então, dividido entre americanos e russos, mocinhos e bandidos, o pop e o underground, Arena e MDB, Globo e SBT. Um tempo em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa. Ponto.
Na lateral do toca discos, o acabamento imitando madeira: mais do que mero adorno, um tributo que a modernidade precisava pagar à tradição, naquela época em que o novo ainda tinha que buscar legitimação no passado. (Lembro-me dos assentos vermelhos da Viação Cometa, onde lia-se: "Esta poltrona é revestida do mais nobre dos materiais: couro legítimo". Penso nas sandálias Havaianas, cujas tiras e sola imitam, respectivamente, o trançado do tecido e a superfície de palha dos chinelos japoneses em que se inspiraram).
Já o iPad, como os outros "is" da Apple, não busca legitimar-se na tradição. O iPhone não imita o telefone, o iPod não finge ser um walkman, nem o tablet é um computador em miniatura.
(Não é sugestivo que a empresa de Steve Jobs chame-se Apple e que, no logotipo, a maçã apareça mordida, evocando o primeiro ato do Homem contra Deus, e, portanto, contra a tradição?) Trajando sua capa de borracha preta, o iPad tem ares de cowboy futurista. Seus únicos pertences são o laço, perdão, o cabo de energia, com o qual captura a eletricidade de que se alimenta, e o lenço sintético, usado para remover de sua tela cristalina as eventuais máculas mundanas. Não precisa de discos nem disquetes, sequer tem entrada USB: recolhe do ar as músicas, filmes, livros e jogos que, invisíveis, pairam sobre nossas cabeças.
No dia em que os dois aparelhos chegaram, achei que o tablet ocuparia todo o espaço, silenciando a vitrola. O iPad, de fato, me conquistou, mas quanto mais me perdia por seus labirintos virtuais, mais compreendia o encanto da ultrapassada solidez dos discos.
Quando a agulha toca a superfície do vinil e, segundos antes do início da música, aquele chiado toma conta da sala, é como se eu desse um trago num cigarro, depois de anos e anos sem fumar. Podem dizer que é só poeira, estática e nostalgia, que seja, mas o crepitar funciona como um discreto acalanto, um leve afago vindo do passado, de um tempo em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa e havia apenas dois lados, A e B, nessa deslumbrante confusão em que o mundo se transformou.

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